Há cem anos morria um papa santo

Há cem anos morria um papa santo
O semblante sereno de Pio X no leito de morte já manifestava a sua entrada no céu

Há cem anos, os grandes sinos da Basílica de São Pedro tocavam pro pontífice agonizante, anunciando ao mundo a morte de um papa santo. Pio X, que durante 11 anos havia governado a Igreja com bondade e sabedoria, partia para a casa do Pai, enquanto o Santíssimo Sacramento era exposto em todas as Basílicas patriarcais de Roma. À Praça de São Pedro logo acorreu milhares de fiéis, dispostos a dar o seu último adeus àquele distinto pontífice. Diante da serenidade com que se apresentava no leito de morte, o médico apenas pôde exprimir estas palavras: “Olhai-o, não está realmente admirável?” [1]

Pio X foi um papa singular sob muitos aspectos. Quando a 20 de julho de 1903 faleceu Leão XIII, as espectativas de que o então patriarca de Veneza, cardeal Giuseppe Melchiorre Sarto, fosse escolhido sucessor de São Pedro eram mínimas. O próprio prelado não cogitava a eleição. Há quem diga que, para a viagem ao conclave do qual sairia papa, tenha comprado passagens de ida e de volta. Além disso, Sarto não almejava o pontificado, sobretudo, por se considerar incapaz de exercer “essa tarefa urgente e dificílima” [2]. Outro fator que pesava contra a sua candidatura era a marca de seu predecessor. Leão XIII era um gênio político, de grande envergadura intelectual. Sarto era apenas um “pároco de aldeia”, como gostava de se definir. Mas a providência divina tinha outros planos.

A princípio, tudo parecia convergir para o cardeal Rampolla, Secretário de Estado de Leão XIII, não fosse o veto imposto por políticos austríacos ao seu nome. O Imperador da Áustria tinha esse “direito” segundo um antigo privilégio. Mas embora a Cúria tenha rechaçado a intervenção, dando ainda mais votos ao antigo braço direito do falecido papa, o fato é que Rampolla não foi capaz de obter o número necessário para a eleição. Fez-se verdade o antigo adágio sobre os conclaves: sai cardeal quem entra papa. O prelado começou a cair escrutínio após escrutínio. Em contrapartida, ganhava força o nome de Sarto.

Quando percebeu que seria eleito Sumo Pontífice, o cardeal não pôde esconder seu assombro e angústia diante da vontade de Deus. A sua primeira atitude, por conseguinte, foi de renúncia. O futuro papa considerava o ministério petrino como uma cruz extremamente pesada para os seus ombros. Recolheu-se para rezar numa capela. Banhado em lágrimas, já sabendo que seria inevitável, aceitou a eleição, tomando para si o nome de Pio X, “em memória dos santos pontífices que, no século passado, lutaram corajosamente contra os erros que pululavam” [3].

E tão logo assumiu o trono de São Pedro, o novo papa fez valer a herança de seus pios predecessores, lançando mãos à obra de recristianização das sociedades. A palavra de ordem era esta: “Restaurar todas as coisas em Cristo” [4]. Com efeito, tudo o que concorria para o bem espiritual da Igreja ganhou prioridade em seu pontificado: a defesa da fé, a atenção aos humildes, a piedade popular, os direitos da Igreja etc. Interessava-lhe, sobretudo, a Sacrifício Eucarístico, o que lhe renderia posteriormente a alcunha de “Papa da Eucaristia”. Assim, incentivou fortemente a comunhão diária além de permiti-la também a crianças com sete anos de idade. Isso porque, tendo a visão espiritual de um santo, Pio X já previa a tragédia na qual a humanidade cairia anos mais tarde. A respeito da guerra, o papa advertiu: “O desejo da paz certamente está bem presente em cada um e não há ninguém que não a invoque com ardor. Mas querer paz sem Deus é absurdo. Onde não há Deus, não há justiça. Onde não há justiça, em vão nutre-se esperança de paz” [5].

Por conseguinte, à medida que Pio X expunha sua figura à sociedade, quer por meio de suas encíclicas e exortações, quer por meio de seus gestos de bondade, crescia a veneração dos fiéis em torno do pontífice. O historiador Daniel-Rops assim descreve [6]:

“Os católicos admiraram Leão XIII e Pio XI; mas amaram Pio X, o seu sorriso de luz, a sua bondade sem reserva, a sua inesgotável caridade. Já em vida se construíra à volta da sua pessoa uma ‘legenda áurea’, abundante em pormenores comovedores, palavras exemplares e até narrativas de milagres (...) Mesmo que alguns traços tenham sido embelezados, ainda ficam outros, indiscutíveis, para que a sua figura nos apareça fora de série”.

Dada a santidade de Pio X, é possível, então, compreender o seu combate severo às heresias, mormente ao modernismo — “a síntese de todos os erros” [7]. É dever do pastor usar o cajado contra os lobos que atacam o rebanho, pois “não se trata de amor, quando se toleram comportamentos indignos da vida sacerdotal. E também não se trata de amor, se se deixa proliferar a heresia, a deturpação e o descalabro da fé, como se tivéssemos nós autonomamente inventado a fé” [8]. Era com base nesta consciência que o santo papa não economizava palavras contra os modernistas: “Não se afastará, portanto, da verdade quem os tiver como os mais perigosos inimigos da Igreja.” [9]

A 20 de agosto de 1914, Deus chamava para o sono eterno o “Papa da Eucaristia”, que tanto tempo lutara para estabelecer a cruz de Cristo sobre todo o mundo. Pio X não suportara a notícia da guerra que então começava a arrasar dezenas de nações. 40 anos depois ele seria elevado às glórias dos altares pelas mãos de outro Pio: “A santidade, inspiradora e guia de Pio X em todos os seus empreendimentos, brilhou ainda mais fulgurante em suas ações quotidianas. A meta que almejava, unir e restaurar todas as coisas em Cristo, é algo que ele fez se tornar realidade em si mesmo antes de levá-la aos outros” [10].

Por Equipe Christo Nihil Praeponere

Referências

  1. DEL VAL, Rafael Merry. O Papa que eu conheci de perto — Memórias de São Pio X. São Paulo: Artpress, 2001, pág. 115.
  2. Pio X, Carta Enc. E Supremi Apostolatus (4 de outubro de 1903), n.3
  3. DANIEL-ROPS. A Igreja das revoluções: um combate por Deus. São Paulo: Quadrante, 2006, pág. 73.
  4. Pio X, Carta Enc. E Supremi Apostolatus (4 de outubro de 1903).
  5. Ibidem, n. 7 
  6. DANIEL-ROPS. A Igreja das revoluções: um combate por Deus. São Paulo: Quadrante, 2006, pág. 83.
  7. Pio X, Carta Enc. Pascendi Dominici Gregis (8 de setembro de 1907).
  8. Bento XVI, Homilia de encerramento do Ano Sacerdotal (11 de junho de 2010).
  9. Pio X, Carta Enc. Pascendi Dominici Gregis (8 de setembro de 1907).
  10. Há 60 anos, o Santo Papa Sarto era canonizado in Fratres in unum.

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Imagem: arquivo pessoal